segunda-feira, 8 de outubro de 2018

A presunção de inocência não é transacionável


Presumir a inocência de alguém não é incompatível com a existência do estatuto de vítima.
E ainda bem que assim é (é sinal de crescimento de uma sociedade)!
O momento em que passamos a credibilizar a posição assumida pela vítima contra a presunção de inocência é que estraga tudo...
Presumir alguém inocente implica não falar sobre a posição do presumido inocente nem sobre a posição da alegada vítima. Implica deixar aos tribunais a decisão, tomada legitimamente porque tomada por quem está no direito de a tomar e porque a tomará na posse de todos os elementos para o fazer...
Depois há os que estão mais preocupados com a sua agenda do que com a justiça.
E esses falam, falam, falam... e ora são aplaudidos ora atacados...
E ficam muito contentes por estarem senão a vencer, a lutar a sua guerra.
E, no meio disto, coisas que nos protegem da arbitrariedade e dos ditadores (como sejam o princípio da presunção de inocência ou o direito a um julgamento justo) vão perdendo sentido para muita gente.
Um dia, filhos dos que tanto apoucam a presunção de inocência, viveremos de novo regimes em que será a menina a ter de demonstrar que não é bruxa ou o menino a ter de provar que não é verdade que ele seja a personificação do demónio.
E, nesse tempo, não haverá quem nos proteja dos abutres porque nos fizeram crer que a proteção não era necessária: importava era a segurança e as lutas pessoais de alguns engajados.
E ai de nós nesse tempo, vítimas de nós próprios e da falta de coragem para lutarmos para não prescindirmos do que, durante séculos, nos legaram aqueles que, verdadeiramente, nos queriam protegidos...

terça-feira, 31 de julho de 2018

O lema é o de sempre: “tornar iguais todos os advogados!”


Sou advogado em prática individual e gosto de o ser.
Tive a honra de ser presidente do IAPI – Instituto dos Advogados em Prática Individual e tenho orgulho no trabalho que levei a cabo com as Colegas que me deram o privilégio de aceitar trabalhar comigo em prol dessa forma de se estar na profissão que (continuo a dizer) é e será sempre a mais bela profissão do mundo.
E faço esta espécie de “declaração prévia de interesses” porque me sinto compelido a escrever umas linhas a propósito dum texto publicado no Boletim da OA deste julho, subscrito pela minha Colega Isabel Malheiro Almeida, que, francamente, me envergonha!
Jamais me passaria pela cabeça, mesmo como presidente de um instituto da Ordem que visava os problemas e as vivências de uma das formas do exercício da profissão de considerar a advocacia em prática individual uma advocacia humanizada, por contraponto a uma advocacia mercantilista, protagonizada esta pelos colegas que exercem em contexto de sociedade, que, mais gravemente, seriam advogados incapazes de empatizar com os clientes e com os seus problemas; jamais (repito, jamais!) sequer pensaria dizer que a advocacia em prática individual tem por vantagem competitiva relativamente à demais formas a circunstância de ser mais “em conta”… jamais (repito, jamais!) menorizaria dessa forma uma forma de se estar na profissão tão digna e tão importante como todas as outras!
E estou à vontade para o dizer: o que estou a escrever agora disse-o sempre.
Por exemplo, lembro-me de, em entrevista que a revista Advocatus me pediu – longe vai o mês de junho de 2015  –, ter afirmado coisas como esta: “Contrariamente ao que muitos gostam de propalar, a advocacia em prática individual não é diferente da restante advocacia e, a meu ver, está – no aspeto técnico, no aspeto deontológico e no aspeto relacional – muito bem preparada para enfrentar os desafios que as novas realidades importam à profissão e à sociedade. (…) Se me permite a analogia, exatamente como os advogados que exercem em sociedade e como os advogados que exercem em contexto de empresa, os advogados em prática individual estão claramente preparados para continuar a aprender, nesta como nas outras áreas da prática profissional.”; ou esta: “A palavra concorrência é já por si uma palavra que não gosto de usar quando falo de advocacia. É certo que a distinção entre advogado em prática individual, advogado que exerce em (pequena, média ou grande) sociedade e advogado de empresa é uma distinção que existe; porém, entendo-a necessária apenas por serem essas as formas – e formas igualmente nobres – de exercício da profissão. Não gosto, porém e como lhe disse, de colocar a questão falando de concorrência. Um advogado a quem a comunidade reconheça honestidade, elevada preparação técnico-jurídica e um domínio apurado das legis artis, independentemente da forma como exerça a profissão, encontrará a sua clientela e tenderá a consolidá-la.”
Continuo a pensar assim (e cada vez mais a pensar assim)! E a ter a certeza de que importa cada vez mais “tornar iguais todos os advogados!”.
Por isso estas linhas, a dizerem da minha mágoa, ao ler num órgão de comunicação social que é propriedade da minha Ordem e que deveria tratar por igual todos os advogados um texto como aquele!
Sejamos claros! A advocacia em prática individual é boa como boa é a advocacia em contexto societário ou em contexto de empresa se tiver a preparação técnico-jurídica e deontológica que tem de ter seja que advogado for!
Menorizar seja que forma seja em que a advocacia se desenvolve não serve os interesses dos clientes, não serve o que importa aos Advogados, nada faz para que a Justiça se faça.
Interessa apenas a uma agenda eleitoralista que se instalou já marcadamente no pulsar diário da nossa Ordem e que bom seria que não continuasse a estragar o que quase um século de história consolidou; interessará a quem tente tapar com falsas guerras intestinas erros tremendos (como foi o de ter feito cessar a prática com muitos anos de dedicar a cada forma de exercício da profissão uma estrutura “autónoma” (entre aspas, como é óbvio) em que a massa crítica de cada uma delas pudesse trazer contributos a todos); não interessa a quem anda todos os dias deliciado a “fazer vida dos problemas dos outros”.
E por aqui me quedo, antes que a mágoa me ponha a escrever mais coisas que penso…
É que já dizia o António Aleixo: “Para não fazeres ofensas / e teres dias felizes, / não digas tudo o que pensas, / mas pensa tudo o que dizes.”

quinta-feira, 28 de junho de 2018

A propósito de uma cronica de jornal...

Li a crónica do meu Colega António Jaime Martins no CM desta semana... 
E a reflexão que a propósito fiz lembrou-me de que, em tempos, quando exerci funções executivas no seio da nossa Ordem (umas por eleição, outras por designação e confiança política), costumava dizer que a minha principal missão nessas funções em que estava investido era "tudo fazer para tornar iguais todos os advogados"...
Isso passa por não enterrarmos a cabeça na areia e compreendermos que não é entre advogados que está instalada a "luta de classes" a que aludiu alguém no recente VIII Congresso dos Advogados Portugueses (tentando esse alguém - ainda mais um alguém com responsabilidades executivas -, sob o meu ponto de vista, esconder com conceitos odiados realidades inegáveis da nossa profissão); passa por perceber que não é entre formas de exercício da profissão que se gera a diferenciação de que a comunidade tanto se queixa.
O que é diferente é a visão sobre o que a advocacia significa e as consequências que essa diferença importa no dia a dia quer dos próprios advogados, quer dos seus patrocinados, quer mesmo dos demais agentes da justiça...
Pode uma sociedade de advogados ver no patrocinado um conjunto de obrigações e deveres (deontológicos, à cabeça) em vez de o "analisar" como uma mera "fonte de receita"? Claro que pode: a esmagadora maioria delas fá-lo!
Pode um advogado em prática individual pensar o seu constituinte como um cliente (no sentido mercantil do conceito) em vez de o ver como o seu mandante forense? Claro que pode (e vemos algumas - demasiadas - situações em que tal sucede)...
É pela forma como exercem a profissão e não pela forma como se organizaram para a exercer que uma e outro dos que acabei de referir são vistos de forma diferente. 
E são-no porque são, de facto, diferentes!
E isso tem consequências em múltiplos planos, como sejam a relação entre Colegas, a relação com valores essenciais como segredo profissional (v.g., a discussão pública de temas profissionais, a publicidade, etc.): a advocacia (strictu sensu - e independentemente da forma como se organiza) tem uma visão de todos esses temas que as "empresas" de prestação de serviços jurídicos não têm...
E que, em bom rigor, não têm como ter... 
Enquanto a advocacia não regressar à sua essência (i.e., a de ser um corpo de gente estudiosa, tecnicamente competente, deontologicamente assertiva que faz vida dos problemas dos outros, independentemente da forma como está organizada para o exercício da profissão); enquanto a sua Ordem e os seus dirigentes não pugnarem por isso, teremos sempre "os bons" e "os maus".
E o erro não será identificar essa realidade, mas antes estar disposto a apontar errada e capciosamente fatores de diferenciação que, de facto, não o são (como oficiosos e não oficiosos, como ricos e pobres, como em prática individual e em sociedade). 
Urge, indiscutivelmente, "tudo fazer para tornar iguais todos os advogados"... E isso passa por dar aos valores da profissão o papel que eles têm de ter e que há quem entenda que não têm de preponderar, porque prejudicam a possibilidade do lucro... 
No fundo, é preciso voltar ao tempo em que havia iguais e, por isso, todos éramos Colegas e renegar sequer a possibilidade de um tempo em que possamos ser vistos como concorrentes. 
Eu - esteja ele numa sociedade, exerça em contexto de empresa ou em prática individual - não sou capaz de ver num Advogado um concorrente. 
Há de ser sempre meu Colega!

quinta-feira, 31 de maio de 2018

Ainda a propósito de eutanásia...

Porque dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, ainda a propósito de eutanásia...

PS: eu continuo a achar que estou do lado certo: se a velhinha quiser ir para "o lado de lá", eu ajudo-a; se ela não quiser, ninguém a pode empurrar!

terça-feira, 29 de maio de 2018

Memórias de um debate par(a)lamentar (ou já que falamos em eutanásia)...






A democracia tem de ser respeitada e é por isso que não me lerão a criticar a votação que hoje decorreu no parlamento (embora me apeteça muito escrever sobre as sensações que tive por ver o PCP "jerimonioso" e CDS "de Crista" a votar do mesmo lado ou sobre como foi delicioso ver a deputada do CDS a usar como grande argumento para os outros partidos passarem a pensar como ela o facto de a Maçonaria pensar como eles deviam pensar)… 



Mas a verdade é que, hoje, só me vinha à ideia o meu avô Herculano, homem de bem e que soube educar e prover a dois filhos e aos empregados que dele dependeram durante toda uma vida de trabalho duro e que (já lá vão mais de trinta anos), comido por um cancro que o havia de levar – imerso em dor, passados uns meses –, pedia à minha mãe, sua filha dileta e que fazia as vezes de enfermeira à mingua delas, que lhe desse de uma vez a morfina que devia durar uns dias e, assim, acabasse com o sofrimento dele. 

Lembro-me das lágrimas que corriam pelo rosto daquele homem que me ensinou a tabuada dos "9" ainda antes de a minha professora primária me ter ensinado a dos "6", de cada vez que a minha mãe tinha de recusar-lhe o pedido que tão genuína e doridamente lhe fazia o homem que mais amava à face da terra; lembro-me do esgar de dor nos seus olhos, ainda hoje me doem os seus gritos de agonia de dia e noite durante muitas semanas… 

Lembro-me da mágoa que via na minha mãe de cada vez que tinha de recusar o que lhe pedia o homem que tanto a amava... 

E lembro-me dos anos todos em que a minha mãe (que, curiosamente, partiu faz hoje quatro anos, do mesmo estúpido cancro de que morreu o meu avô) se roeu por dentro por não o ter podido respeitar naquela que era a sua vontade legítima (digo eu) e compreensível (diremos muitos, espero). 

Como há trinta e tal anos o meu avô estava condenado a sofrer (como um danado num inferno terrestre), hoje condenaram-se muitos a continuar a sofrer... 

Ao meu avô Herculano não lhe permitiram senão (face à míngua de mínimo de esperança de vida digna) viver (sabendo que não lhe sobreviveria) um cancro que lhe comeu o corpo todo, ao ponto de ter sofrido uma fratura exposta num braço quando alguém lhe dava banho, ao ponto de ter deixado de (re)conhecer a mulher que amara a vida toda, de tal modo o cérebro estava já "comido". Como há trinta anos, condenaram-se milhares a fazer de conta que não ouvem (como a minha mãe não podia ouvir) todas as vezes em que os Herculanos que por aí estão pedem o que acham que é seu direito: ir embora enquanto o mínimo da dignidade ainda lá estiver... 

A democracia tem de ser respeitada, é um facto… mas dói muito ter de o fazer quando é ela quem condena à indignidade quem merecia dela mais respeito…


domingo, 20 de maio de 2018

É tempo de calar os silêncios...



Alguns dos que – verdadeiramente – são meus amigos vão ficar chateados comigo por eu ter escrito este post, bem o sei…
Mas a esses – como aos demais – apenas posso dizer que há momentos em que ficar calado é compactuar com o mal; neste caso com o mal que está a fazer à profissão que abracei gostosamente e na qual tenho o maior orgulho quem a deveria proteger (por negligência e absoluta incompetência – prefiro pensar).
Vem, pois, este post a propósito do que assisti na Sessão Solene da Comemoração do Dia do Advogado de 2018, no Algarve.
Confesso que não era evento a que tivesse querido ir: fui porque assuntos prementes obrigaram a marcar reunião do Conselho Superior da Ordem dos Advogados Portugueses e não gosto de falhar a convocatórias do órgão para o qual os meus Colegas me elegeram (até hoje, que me lembre, faltei a uma única reunião plenária, por sobreposição com um julgamento a que não podia mesmo faltar).
Mas ouvir o discurso do Bastonário da Ordem fez-me ter a certeza de que melhor teria empregue o meu dia de sábado na praia (parece que o mar em Espinho estava “qualquer coisa”).
Ouvi coisas que me arrepiaram, ainda mais quando não sei esquecer estar perante alguém que tentou punir um eleito por delito de opinião e, para além de manter uma perseguição feroz a seus iguais, vai vendo os que lhe eram próximos saltarem borda fora, constatando a falta de respeito pela democracia efetiva (porque o maior ato de democracia há de estar sempre no respeito pelo programa e pelas promessas com que se foi ao sufrágio).
Uma das que ouvi, então (porque bastaria ouvir os advogados para não a poder proferir), deixou-me verdadeiramente de cabelos em pé: a afirmação de um otimismo decorrente do facto de “a justiça estar muito melhor”, dando isso como assente pelo facto de assim o demonstrarem (pasme-se!!!) os relatórios dos Conselhos Consultivos das várias Comarcas…
O que me custou mais, porém, foram os silêncios:
– sobre reorganização judiciária (que se esperava que estivesse mais que estudada: todos sabíamos que a lei tinha de ser reavaliada passados três anos da sua implantação);
– sobre os muitos (essencialmente, jovens) que penam em verdadeiros contratos de exploração laboral consentida sob a capa de falsos recibos verdes;
– sobre exigências que se têm de fazer ao Estado para melhorar a relação do cidadão e do advogado com a justiça (e dizer que se quer que os processos judiciais possam passar a ser consultado de forma corrida no Citius ou que as gravações dispensem CD, podendo ser ouvidas diretamente no dito sistema… não conta);
– sobre o incremento dos que são atos próprios da advocacia, matéria em que imperou o zero: um redondo e exasperante “zero”;
– sobre a total demissão da Ordem dos Advogados (com especial importância para os que exercem em prática individual) da sua obrigação de colaborar ativamente para a formação contínua dos Advogados;
 sobre um tema (“o” tema) que verdadeiramente importa à advocacia (a toda a advocacia, não à que é ouvida pelas bandas de S. Domingos), a questão da Caixa de Previdência de Advogados e Solicitadores, e sobre o facto de todos sabermos que é coisa que, se não mudar (muito e rapidamente) vai conduzir para fora da profissão milhares de Colegas que fazem falta à profissão e aos cidadãos;
O que ali tivemos de ouvir foi um Presidente do Conselho Geral da Ordem incapaz de mostrar (às tantas, porque não o tem ou o que tem é mau…) um projeto que possa proteger os advogados (todos os advogados!), que possa defender a cidadania, sem uma ideia do que seja necessário fazer para servir a advocacia, servir os advogados e fazer aquilo para que a Ordem e os seus órgãos existem…
E, mesmo assim, um sorridente (quase gozão) bastonário a conseguir regozijar-se e (auto)enaltecer-se – como se elogio em boca própria fosse outra coisa que não vitupério – por coisas que em nada beneficiam os advogados (como seja o famigerado pacto para a justiça, onde ganharam todos, menos os que defendem os cidadãos).
Infelizmente, creio que concordam comigo muitos dos que não lá foram (e é preciso deixar escrito que, num espaço onde cabiam talvez mais uns cinquenta advogados que aqueles que lá estavam por serem homenageados (e seus convidados) e membros de órgãos da Ordem, havia cadeiras por ocupar, num sinal claro de divergência entre quem é a Ordem dos Advogados (os Advogados) e quem a dirige…
O que peço a esses – e creio que posso, que tenho tempo de casa que chegue para o poder fazer sem que alguém pense que o que me move é algo diferente da profissão que amo como a poucas coisas na minha vida! – é que se deixem de silêncios e comecem a pedir mais, a intervir mais, a não rejeitar presença em todos os fóruns e em todas as discussões…
Porque Martin Luther King tinha toda a razão quando dizia que “O que me assusta não são as ações e os gritos das pessoas más, mas a indiferença e o silêncio das pessoas boas.”