terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

CONTRIBUTO PARA UMA REFORMA DA PREVIDÊNCIA DOS ADVOGADOS.


Há muito que reflito sobre as muitas formas como se pode traçar uma reforma da Previdência dos Advogados (e Solicitadores, já agora: embora não seja a minha “seara”, a CPAS é isso mesmo: Caixa de Previdência de Advogados e Solicitadores).
Não excluo – por ter de reconhecer que poderá ser a derradeira solução – a integração na CPAS na Segurança Social… E, porque a memória me leva a pensar no que foi a integração da Caixa dos Jornalistas no regime geral e o conhecimento das dificuldades por que crescentemente passam esses profissionais depois disso, creio que só mesmo como derradeira solução deverá ser pensada: a CPAS é fruto de uma História e de décadas de contribuições de milhares de Advogados e Solicitadores e essa História gerou um património e uma liberdade de ação (relativa, é certo, mas uma liberdade de ação) que não se pode vilipendiar sem mais.
Creio, porém, que urge pensar outros mecanismos, em face dos problemas reais por que passam os Advogados, precisamente por causa da sua Caixa e da necessidade que ela tem de financiamento e de sustentabilidade. E que é, neste momento, essa a encruzilhada em que nos encontramos como profissionais e como cidadãos. Não podemos esquecer que um Advogado só é verdadeiramente livre se tiver a liberdade financeira que lhe permita não sair do caminho ético que a sua Deontologia lhe avança, precisamente como garante dessa liberdade; mas também não podemos deixar de considerar que o levar dinheiro para casa, depois de pagar as despesas do exercício profissional, é essencial a que se mantenha como Advogado e que essa vocação merece, por parte dos seus pares e por parte do Estado, (no mínimo!) consideração.
Não vou perder tempo com a história que nos trouxe ao atual Regulamento da CPAS. Mas vou lembrar todos que o problema maior que ele tem é precisamente o de ter pesado (não exclusivamente, é verdade, mas muito fortemente) a sustentabilidade da CPAS como fator determinante das alterações havidas e de não ter dado o devido peso à consideração das condições de vida dos Advogados. E que, com isso, no essencial, estamos a prejudicar milhares de Advogados que, quase todos no início de carreira, não conseguem suportar o encargo (pesado, muito pesado!) que advém do pagamento de EUR 251,38 por mês para a sua contribuição para a CPAS.
Estamos a acrescentar EUR 251,38 a outras despesas de que nenhum profissional da Advocacia pode fugir, se quiser ter o mínimo de dignidade no seu escritório (dignidade que, contra o que muitos propugnam, não passa por mais que uma coisa essencial: garantir a matriz primordial da profissão, o segredo profissional!): a) o custo do espaço onde o domicílio profissional esteja estabelecido (vamos dizer “por baixo”) de EUR 300,00; b) as quotas para a OA, no valor de EUR 35,00; c) os custos com comunicações, água, luz elétrica e consumíveis do escritório (papel, toners, correios, etc), que nunca são inferiores, mesmo para um forreta, a EUR 150,00; d) seguros (de responsabilidade civil profissional e de acidentes de trabalho), esses de uns EUR 25,00 por mês; e) os transportes (sim, os tribunais não são à porta do escritório e a nossa casa também não), que devem consumir em média (e com sorte) uns EUR 100,00 a cada um de nós…
Ou seja, para cada um de nós ter uma porta aberta tem de gastar (e vou voltar a dizer: “por baixo”) EUR 850,00… alguns, ou porque se associaram com Colegas para dividir dias em que estão no escritório ou porque trabalham a partir de casa, ou por algum milagre que não sei como se alcança, conseguem baixar esse valor para um montante de EUR 600,00 ou EUR 650,00… mas a isso tem de se acrescentar o que é preciso levar para casa: nem todos os Advogados têm património que os sustente e nenhum deveria ter de passar pela humilhação de ver os pais a perpetuar a mesada para que possam continuar a sonhar ficar na profissão que têm por vocação. Pensemos, então, que levam para casa o valor equivalente ao salário mínimo e que é esse, efetivamente, o “lucro” que retiram da Advocacia…
Ora, a verdade é que a esmagadora maioria dos Advogados, pelo menos, os que estão em início de carreira (mas muitos outros estão na mesma situação, apesar de terem já alguns anos de exercício da profissão, não ganha EUR 1.480,00 por mês (ou, na lógica do milagre que acima referi, EUR 1.230,00)… muitos, na verdade, ganham pouco (mesmo muito pouco) mais do que aquilo que precisam para pagar as despesas mensais que lhes permitem ser Advogados.
E eis o primeiro problema: a CPAS “decretou” que cada Advogado aufere, no mínimo, o equivalente a EUR 1.163,80 (i.e., duas vezes índice contributivo, no valor de EUR 581,90) e calcula a contribuição mensal mínima em função desse “decreto”.
E como fazer relativamente aos que auferem menos que aquele valor? Vamos mandá-los da profissão para fora, porque não conseguem pagar esse mínimo (erradamente) presumido?
É urgente que esse mínimo presumido deixe de ser considerado aceitável e nos encaminhemos para um caminho (o certo, não tenho dúvida, nem que seja por ser o que gera alguma igualdade relativamente aos demais profissionais liberais) em que a presunção possa ser ilidida: se um Advogado ganha o equivalente ao salário mínimo nacional deve pagar contribuição equivalente a esse valor e não equivalente ao montante de quase dois salários mínimos.
O problema, dirão muitos, é que, com isso se coloca em causa a sustentabilidade da CPAS.
Se nada se fizesse, isso até pode ser verdade. E, por isso, é urgente que algo se faça. E esse “algo” tem de passar pela introdução do termo solidariedade no pensamento da CPAS.
A – desde logo, solidariedade intergeracional: Não aceito (e quero lá saber se isso é ou não politicamente correto) que um Advogado que continua a exercer depois de passar a ter reforma possa ser tratado de forma diferente de todos os demais que exercem a profissão e ficar apenas sujeitos a uma “amostra” (miserável amostra) de contribuição, em vez de continuarem (enquanto exercerem) a descontar pelos seus rendimentos (incluindo os que lhe advenham da CPAS)!
Sem prejudicar direitos adquiridos (jamais tal me passaria pela cabeça), é urgente que a situação atual se altere e essa noção de solidariedade intergeracional se instale de uma vez por todas, em situações futuras! Só assim garantiremos o que é necessário atingir: uma solidariedade intergeracional que se faça tanto dos mais novos para os mais velhos quanto dos mais velhos para os mais novos!
B – mas, não menos, solidariedade entre os que estão no ativo:
O problema maior da CPAS, neste momento, é que o mínimo é igual para todos: paga EUR 251,38 o Advogado que aufere EUR 900,00, como o Advogado que aufere EUR 9.000,00, como ainda o que aufere EUR 90.000,00. E não me venham com a treta de que o que ganha EUR 9.000,00 apenas se está a desproteger, porque, ao não contribuir, não está a formar a pensão de reforma compatível com o que está habituado a ganhar: a isso eu respondo com uma sonora gargalhada! O que esse Colega está a fazer é que o jovem Advogado contribua acima das suas capacidades contributivas, enquanto que ele está – tão confortável quão vergonhosamente – a descontar muito abaixo da sua capacidade contributiva (e, confesso que felizmente, entre eles me incluo).
Por isso, preconizo (há muito!) que os critérios de definição da contribuição mínima de cada Avogado sejam profundamente alterados. Preconizo algo que poderá parecer estranho, mas que me parece profundamente eficaz, em quatro premissas:
1ª – total isenção de contribuições para a CPAS nos dois primeiros anos civis de exercício da profissão: sem prejuízo de o Advogado entender começar a sua carreira contributiva mais cedo (neste caso, escolhendo livremente o escalão por que faria os seus descontos) e quer com o objetivo de contribuirmos todos para a sua instalação no mercado, quer para permitir a fiabilidade do que proponho em 2-, os Advogados ficariam dispensados de contribuir para a CPAS nos dois primeiros anos civis de exercício da profissão;
2ª – abaixo do (novo) escalão mínimo, a todos os Advogados seria facultada a possibilidade de demonstrar que auferira menos que o respetivo valor, sempre com fixação de um mínimo de contribuição pelo 1º escalão: tomemos como referência o trimestre (que facilmente é comprovável, v.g., por declarações de IVA ou por certidão fiscal de que o mínimo para a ele se está sujeito foi atingido, com menção de valores) e imaginemos que um Advogado:
a) ao longo do primeiro trimestre de um ano, auferiu honorários médios de EUR 450,00; comprovando-o, comunicará tal facto à CPAS e, no terceiro trimestre (não refiro o segundo, por impossibilidade e porque me parece importante que a CPAS tenha tempo para processar toda a documentação), pagará mensalmente EUR 94,27 – equivalente ao 3º escalão: EUR 450,00 < (0,75 x EUR 581,90 = EUR 436,43);
b) no segundo trimestre a coisa melhora e o Advogado auferiu honorários de EUR 5.000,00 (o que, em média, vai dar EUR 1.666,66); pelos mesmos critérios, no último trimestre desse ano, vai pagar mensalmente EUR 345,65 – contribuição equivalente ao 8º escalão: EUR 1.666,66 > (2,75 x EUR 581,90 = EUR 1.600,23);
c) no terceiro trimestre a coisa piora e o Advogado auferiu honorários médios de EUR 200,00; pelos mesmos critérios, no primeiro trimestre do ano seguinte, vai pagar mensalmente EUR 31,42 – equivalente ao 1º escalão: EUR 200 > (0,25 x EUR 581,90 = EUR 145,48);
d) se o último trimestre for de total ausência de honorários (ou e não atingir o equivalente ao tal mínimo de EUR 145,48), terá de pagar a contribuição mínima, os tais EUR 31,42;
3ª – aumentar o mínimo de contribuição para o atual 12º escalão: a obrigação de todo e qualquer Advogado cujos rendimentos não lhe permitissem fazer a demonstração a que aludo na segunda premissa (ou, por hipótese, não a quisessem fazer) seria a de pagar EUR 754,14;
4ª – a todos seria assegurada a possibilidade de, querendo (e mediante declaração nesse sentido), contribuir por qualquer dos escalões acima do atual 12º (o que passaria a ser o mínimo):

É obvio que este “sistema” não é perfeito e estou seguro de que pode ser melhorado. Mas encontro-lhe vantagens:
– não é preciso que haja qualquer comunicação entre o Fisco e a CPAS; não há qualquer violação do segredo fiscal de nenhum Advogado;
– parece-me que contribuirá para deixarmos de estar na iniquidade de colocarmos sistematicamente em causa as condições de vida dos Advogados que não auferem honorários suficientes para pagar o esbulho que, para muitos, constitui o pagamento mensal de EUR 251,83;
– estaríamos a fazer com que todos os que, neste momento, ganham mais que EUR 1.163,80 e menos que EUR 3.491,40 (i.e., mais que duas vezes e menos que seis vezes o índice contributivo), passassem a pagar um pouco mais de acordo com a respetiva capacidade contributiva;
– e estaríamos também a reconhecer algum respeito pela História da CPAS – história que também passou pela liberdade de escolha da contribuição, e que, acima de tais limites, não deve ser posta em causa; da mesma maneira, tal nunca causaria problemas à CPAS: a reforma está condicionada aos descontos efetivos… se algum Advogado quisesse melhorar a sua reforma futura, descontando pelo 20º ou pelo 25º escalão, beneficiaria do seu esforço…
– não estaríamos a colocar em risco a sustentabilidade da CPAS: estou, francamente, convencido de que o que defendo fará até aumentar as receitas da Caixa (eu, por exemplo, não mais poderia contribuir pelo escalão mínimo, mas colaboraria para a sustentabilidade da CPAS sem prejudicar os mais novos – e, como eu, felizmente, muitos!).
– esse aumento de receita da CPAS poderá permitir-lhe abrir caminho à implementação de uma visão assistencial, que lhe tem faltado e que faz dela uma instituição por vezes “aparentemente inútil).

A minha reflexão é esta; está feita há muito; agora, fica "preto no branco", se servir para alguma coisa…

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020


A propósito desta coisa de quererem impedir a discussão dos projetos sobre eutanásia (e presumindo a autorização, posto que a declaração de voto  é pública e está publicada), aconselho vivamente a leitura de duas páginas de superior inteligência e profundo estudo sobre o assunto, onde o Senhor Professor André Gonçalo Dias Pereira diz tanto sobre o para onde devemos caminhar como comunidade...

Porque (e uso as suas palavras): o que andamos a discutir é saber se damos ou não "a primazia [à] autonomia da pessoa doente [face à] ilegitimidade de – numa sociedade plural e democrática – se querer impor certas formas de morrer a outras pessoas"...
Bem haja, Senhor Professor!

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Independência vs autonomia... sim: "vs"!


Sei que vou ser “contra-corrente” e até pouco politicamente correto, mas ando francamente incomodado com este rasgar de vestes de tanta gente a propósito da decisão da Senhora Procuradora Geral da Républica de dar corpo internamente a este parecer do Conselho Consultivo da PGR… 
Com o devido respeito, que muito é, não se estará a dar demasiada aproximação ao conceito "independência" à autonomia que caracteriza o Ministério Público (coisa que a lei e a História por trás dela quiseram que fosse o que lhe está atribuído)?
Não pode haver independência numa estrutura (felizmente) pensada como hierarquizada...
Deixo, obviamente, o seguinte ponto prévio: rejeito pura e simplesmente a possibilidade (quanto a mim, ilegal - ainda para mais num órgão sujeito ao princípio da legalidade), repito, a possibilidade sequer de uma intervenção não escrita e sujeita, oportunamente, ao princípio da publicidade (mais que não seja porque, quanto a mim, é imperioso que o JIC possa perceber na totalidade o que se passou no processo durante a fase de inquérito, se efetivamente se quer que ele o sancione e "avalize" - as aspas são propositadas).
Já no que toca ao que muitos chamam de interferência, estou em crer que mais não é que o decurso da hierarquia e da hierarquização a que o Ministério Público está sujeito, a meu ver felizmente.
Talvez tenha que ver com a minha convicção do que é e deve ser o Ministério Público.
Sempre o entendi autónomo e nunca independente – indepenência que, sob o meu ponto de vista, a hierarquia impede pura e simplesmente.
E isso trouxe-me já alguns amargos de boca, confesso (v.g., há anos que um procurador se incomodou muito comigo e ainda hoje vive assim, incomodado – o que só me incomoda porque somos francamente amigos e não gosto de quezílias com amigos, confesso! – porque eu não abdico da minha decisão de nunca me referir a um procurador (salvo o que for PGR) como sendo "magistrado", coisa que não o faço por entender que o magister vem exclusivamente da independência e essa só a reconheço aos senhores juízes, no nosso quadro jurídico-constitucional).
Mas a verdade é que eu acho necessário que um procurador-coordenador tenha a legitimidade para dizer a um procurador da sua "equipa" que não é aquela a linha de investigação que deve seguir, mas antes aqueloutra, com vista a cumprir eficazmente o princípio da legalidade a que o Ministério Público, enquanto corpo e enquanto órgão, está adstrito.
Até porque considero que é nessa hierarquização que se define a regra essencial: os bons vão subindo e "ensinando" os que ainda lá não chegaram...
Passe o exemplo (que, por cautela, vou dizer que é absolutamente ficcionado), há meses, dei com um Colega a contar que, num inquérito, se apercebeu de que o seu constituinte estava tramado: o procurador adjunto estava mesmo a andar para onde lhe dava jeito em termos de investigação até certo ponto e, de um momento para o outro, a coisa começou a correr ao contrário. E contava que soube, depois e por mero acaso, que a coisa tinha acontecido assim porque alguém na PSP tinha ido "bichanar" ao superior hierárquico que a coisa estava a andar mal e o superior hierárquico tinha intervindo, corrigindo o comportamento (bem pensado se o objetivo era (e sei que era) para apanhar mais uns quantos do que os que se apanharam, mas pouco eficaz para a investigação, i.e., para a possibilidade de vir produzir uma acusação verdadeiramente forte e demonstrável – coisa que, confessadamente, até dava jeito ao cliente do tal Colega).
Vamos a factos?
– Essa intervenção não foi absolutamente secreta? Foi!
– Está documentada em lado nenhum do processo? Obviamente, não (e não será a mim que me lerá alguém a escrever que tal teve o fito de “proteger”, quase corporativamente, o mais abaixo na hierarquia) …
 Alguém se chateou ou rasgou as vestes por isso? Obviamente que não… até porque a prossecução da ideia de “legalidade” ficou reposta com a “intervenção oculta”...
– O que há de errado nisso? O facto de não ter sido documentada a intervenção (ao que tudo aponta, "musculada")... porque a legalidade, essa, garantiu-se só dessa forma!
Não me digam, portanto, que a intervenção nos termos em que o tal parecer a defende e propugna é má!
Não é! É uma decorrência normal de uma hierarquia e de uma hierarquização que a Constituição e a Lei querem, por muito que não agrade a uns e outros…
Uma nota final: eu sei que é difícil a quem preza a sua independência acima de tudo e sabe que ela (só ela!) é garantia de efetivação do Estado de Direito, pensar que haja dever de "obediência" (e ponho as aspas de propósito) oponível a alguém dos que trabalhamos nesta "coisa" que é a justiça... mas a verdade é que um Procurador não é independente: é parte de uma estrutura hierarquizada, que nem ela é independente: é autónoma...
Talvez tenhamos errado quando fizemos os agentes dessa hierarquia e a comunidade achar que sim (e fizemo-lo, v.g., nas becas iguais, nos gabinetes porta com porta em vez de estarem em edifícios diferentes as respetivas zonas de trabalho, nas bancada que são da mesma altura nas salas de audiências, etc...)...
Eu, pelo menos e com mágoa, tendo a considerar que sim cada vez mais...
Por mim, não prescindirei de colocar esta questão onde ela deve ser colocada: Independência vs autonomia... sim: "vs", porque são conflituantes e, quando deixarem de o ser, perderá muito mais o Estado de Direito Democrático que qualquer das sua instituições...