domingo, 10 de outubro de 2021

Refletindo (um pouco) sobre as alterações à Lei das Associações Públicas Profissionais...

 Até porque está na moda, faço a as seguintes declarações de interesses: sou militante do Partido Socialista e sou Advogado; uma condição não anula a outra: se por esta última faço vida dos problemas dos outros, aquela é uma das melhores formas que encontrei para o que me parece mais importante no meu devir, leia-se, tudo fazer para diminuir os problemas dos meus concidadãos.

Questão prévia: infelizmente, a questão sobre a qual me proponho pensar tem um lastro indesmentível: as Ordens Profissionais deixaram-se (auto e hétero) enlevar com demasiada facilidade ao estatuto de Oposição aos Governos (especialmente ao atual e ao que o antecedeu) e a tentação natural de lhes colocar a pata em cima (passe a expressão) é quase óbvia… porém, não foi para isso que elegemos duzentos e trinta Deputados à Assembleia da República!

Mesmo concordando que (desde a execrável bastonária da Ordem dos Enfermeiros ao sempre presente (para maldizer) bastonário da Ordem dos Médicos, ao – lamentavelmente! – mais preocupado em ser arauto do PSD que Bastonário dos Advogados que tem sido o bastonário da Ordem dos Advogados) os representantes eleitos das Ordens Profissionais têm extravasado em demasia as suas funções, a verdade é que não é pela lei da rolha ou por criar dentro delas órgãos com forte influência do Estado e não dos seus associados que passa a solução dos problemas: a Liberdade sempre se fez pela libertação e jamais se alcança pela tentativa de normalização das grilhetas, sejam elas quais forem!

Isto posto, várias críticas me merecem o Projeto de Lei n.º 974/XIV/3.ª, apresentado pelo Partido de que sou militante:

1.       Pela positiva:

a.       O facto de se ter alguma mão – finalmente! – na proliferação das Ordens Profissionais: cresciam como cogumelos e é bom que se perceba que só fazem sentido quando de facto, fazem sentido;

b.       O facto de se prever que a (sic) “a fiscalização sobre a atuação dos seus membros no âmbito das suas funções, para efeitos de exercício do poder disciplinar, podendo estabelecer protocolos com os competentes serviços de fiscalização e inspeção do Estado”: irrelevante – espero – no contexto das Ordens dos Advogados e dos Solicitadores e Agentes de Execução, pode ser muitíssimo importante para que essa fiscalização seja atempada e assertiva em outras Ordens Profissionais;

c.       O facto de – v. a nova redação do artigo 8º, nº 1, alínea d) – se obrigar à abertura de estágios pelo menos uma vez por ano: nada justificava que se deixasse à discricionariedade das Ordens quando poderiam entrar novos profissionais no mercado de trabalho;

d.       A previsão de que, na fase formativa do estágio profissional não devem ser ministradas matérias que as faculdades têm por obrigação ter ensinado (v. o novo número 6 do artigo 8º): pensado na dos Advogados, deve ensinar-se Deontologia e as demais ferramentas que sejam novas; repetir o que o candidato à Advocacia já deveria saber sempre foi algo que critiquei e que, agora, se vê corrigido;


2.       Pela negativa:

a.       a colocação da representação e defesa dos interesses gerais da profissão que lhes está acometida ao serviço do quadro o respeito dos direitos e interesses gerais dos destinatários dos serviços: o que se faz (com péssima técnica legislativa) é retirar às Ordens aquilo que era sua função imanente e que estava na alínea a) do nº 1 do artigo 5º da LAPP: atribuir-lhes, prima facie, (sic) “a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços”; isto não é inocente, obviamente, mas a verdade é que é um mau caminho: as Ordens deixam, doravante, de poder dizer ser sua atribuição defender os clientes dos utentes das profissões que representam e isso é péssimo para a cidadania!;

b.       a redação nóvel do número 3 do artigo 5º: a retirada da expressão “que não estejam previstas na lei” é de uma gravidade que só se compreende pelo que deixei dito em 2.a.: como as Ordens deixam de ter atribuições de defesa dos clientes dos seus profissionais, deixam de ter suporte ético para o exercício de algo que só se explicava por aí; na verdade, as restrições de acesso às profissões só se justificavam porque estavam ao serviço da boa prestação de serviços aos cidadãos; se isso deixa de ser preocupação das Ordens, começa o regabofe;

c.       a diminuição do período de estágio para um máximo de um ano: tenho o privilégio de ter patrocinado já alguns estágios e tenho por medida o facto de um deles me ter pedido para prorrogar o estágio por mais seis meses por entender que o tempo do estágio não era suficiente para o que entendia que deveria aprender; falando só da Advocacia, tenho por certo que um ano entre a inscrição e a obtenção de cédula profissional é manifestamente insuficiente para que alguém possa dizer que apreendeu o necessário do quão diferente é ser-se jurista de ser-se advogado; quem perde? Obviamente, os clientes desses futuros advogados que não os terão preparados e com bases sólidas numa profissão que tem tanto de difícil quanto de bela; mas isso (volto ao mesmo) importa pouco: às Ordens Profissionais já não compete “a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços”; infelizmente;

d.       a circunstância de (sic – v. o novo número 8 do artigo 8º) “A avaliação final do estágio é da responsabilidade de um júri independente, que deve integrar personalidades de reconhecido mérito, que não sejam membros da associação pública profissional.”; perdoem-me a franqueza, quem melhor que um Advogado pode avaliar se um candidato a sê-lo está preparado para que se lhe entregue uma cédula profissional? Concordaria que tivessem de ser membros do Júri Juízes, Procuradores e/ou (com mais reserva) Professores de Direito; excluir os Advogados do processo é uma indignidade para com os próprios candidatos!;

e.       o Provedor: não me incomodaria se não fosse previsto ser designado de entre uma pré-escolha pela (sic) “entidade pública responsável pela defesa do consumidor”… o Estado decide quem lá quer e o Bastonário só escolhe quem lhe parece melhor de entre os três? Uma aberração!;

f.        O órgão de supervisão (v. o novo artigo 15º-A): e este em vários planos

                                                               i.      Desde logo, nas suas funções: regular não é decidir sobre recurso de decisões disciplinares: isso é julgar (mesmo que em recurso); regular não é reconhecer habilitações de estrangeiros: isso é tarefa executiva e deve caber aos órgãos executivos; regular não é (não poder ser!) ter o direito exclusivo de pronúncia sobre questões como a fixação de atos (que devam ser) exclusivos das profissões, ainda para mais quando da sua composição não consta uma maioria de Advogados;

                                                             ii.       na sua composição: ainda para mais num momento em que tanto se fala (não sei se bem!) da diminuição dos não juízes e dos não procuradores dos respetivos Conselhos Superiores, inverter-se a lógica para as Ordens, a dos Advogados à cabeça, não se compreende!;

                                                           iii.      Na sua incapacidade prática: alguém imagina possível que um órgão como o órgão de supervisão pode manter o mesmo nível de produtividade que até até aqui tem o Conselho Superior da Ordem dos Advogados (onde, sozinho, tramitei mais de duzentos processos em três anos, mas onde era um em vinte e um membros) sendo reduzido para sete membros e com funções mais abrangentes do que aquelas que tem o atual órgão de jurisdição máxima da OA? Não brinquemos com coisas sérias!

3.       Sobre um ponto não tenho opinião formada e confesso que não me sinto capaz de defender uma dama ou a outra: a possibilidade das chamadas sociedades multidisciplinares… sei que me socorro frequentemente de médicos, contabilistas, revisores oficiais de contas, de arquitetos ou engenheiros para o exercício da minha profissão: não os quereria para meus sócios (porque o segredo profissional é demasiado sagrado para que possa prescindir dele por força de um contrato de sociedade a favor de quem não o tem por força da lei); mas a verdade é que, salvaguardado o segredo, elas até podem ser uma forma de garantir melhores serviços… confessadamente, não sei o que pensar do assunto…  No entanto, o facto de se garantir a possibilidade de serem (sic – v. o novo artigo 27º, nº 4)sócios, gerentes ou administradores das sociedades [multidisciplinares] pessoas que não possuam as qualificações profissionais exigidas para o exercício das profissões organizadas na associação pública profissional respetiva (…)” faz-me francamente temer o pior: pensando na Advocacia, como se salvaguardam os valores essenciais da Profissão quando o patrão não tem de comungar deles e visa exclusivamente que a sua sociedade dê lucro? Acho que andamos a brincar e que quem pensou esta alarvidade não conhece o conceito de caixa de Pandora…

Em suma, o cômputo geral é dececionante, senhores Deputados proponentes:

·         é preciso proteger mais os clientes? Sem dúvida! Mas faça-se isso em colaboração, não em oposição…

·        é preciso garantir o fluxo rápido dos alunos das faculdades para o mercado de trabalho? Até dou de barato que sim… porém, algum dos Senhores Deputados entregaria a sua Liberdade ou a sua Fazenda a um advogado licenciado em quatro anos e com um “amostra” de estágio de pouco mais de (na prática) seis meses? É óbvio que não! Mas também é óbvio que estão a entregar a Liberdade e a Fazenda dos que precisam dos Advogados que prestam o chamado patrocínio oficioso tanto aos que cá estão e estão preparados como aos que aí vêm e que jamais estarão!

·      é preciso democratizar a supervisão as Ordens? Com certeza! Mas, então, faça-se isso através de verdadeira supervisão, não através de mecanismos de controle estadual de que ninguém efetivamente precisa!

Tendes tempo para melhor… esperemos que o saibais aproveitar!