segunda-feira, 20 de junho de 2022

Algumas notas que gostaria de tirar do resultado das eleições em França deste último fim de semana:

1. Macron é verdadeiramente herdeiro de uma cultura que se foi instalando na Europa no pós (flagelo que foi a era) Tatcher, e que ele próprio formulou como tese “ni droite, ni gauche”;

2. Os últimos 30 anos têm sido exatamente isso: uma Europa quase sempre com vergonha das diferenças ideológicas que marcam as distinções dentro de si mesma e entre si e o mundo (o de influência americana e o de influência asiática, se calhar não tão díspares como alguns gostam de fazer pensar);

3. Pelo meio, os mais desfavorecidos foram-se sentindo crescentemente deixados à sua sorte, com cada vez menos proteção social, com cada vez menos presença do Estado a assegurar a sua capacidade de serem iguais apesar de terem proveniências diferentes dos que se sentem (e com razão!) cada vez mais importantes e cada vez mais distantes de uma sensação de pertença a uma comunidade que tem no Estado o seu suporte de Dignidade, Respeito e Segurança;

4. Aproveitando-se disso, à direita e à esquerda, tomaram-se caminhos que temos de reconhecer como legítimos e, malogradamente, justificados (apenas agora: não o eram há trinta anos e não o eram justificadamente);

5. Se da deputada Le Pen não se esperava outra coisa (sempre procurou legitimação para a sua política de segregação, de desprotegimento dos mais fracos, desse nacionalismo bacoco que nos levou às Guerras Mundiais que prejudicaram essencialmente a Europa, destruindo-a e permitindo a (re)afirmação de outros "blocos" ainda hoje tremendamente fortes), talvez de Mélenchon se devesse esperar algo mais (afinal, de alguém que foi ministro da educação de Jospin e do tempo da convivência que o caracterizou, talvez se devesse esperar menos taticismo e maior cuidado com o Bem Comum);

6. A verdade, porém (e repito) é que ambos se justificam e se podem justificar no quadro atual (quadro que não é, manifestamente, exclusivo da França: países há em que a radicalização - à direita, essencialmente - se faz cada vez mais evidente e com consequências cada vez mais previsíveis...);

7. regresso ao ponto 1.: isso advém, sob o meu ponto de vista do apego de tantos (ainda hoje) ao que foi o flagelo (na era) Tatcher: a ideia de que se pode descaracterizar (subverter, até) um sistema político e manter todos as viver nas condições que esse sistema político lhes assegurava é uma estupidez sem conta e com consequências que estão à vista: um mundo pensado para pobres não faz dos ricos menos ricos; mas um mundo pensado para ricos faz dos pobres mais pobres, inelutavelmente!;

8. Erro talvez maior foi querer passar a ideia de que era a ideologia que matava o "sonho europeu": não era! Pelo contrário, era (e é!) a ideologia que o manteve vivo e capaz de fazer algo pelo Bem Comum!

9. Macron (que persiste na estupidez da sua "renascença", apresentando-a como "juntos"), é assim, herdeiro de si mesmo e da negação da Europa que dizia preconizar;

10. No meio disto, uns abandonaram o ideal europeu (à sua esquerda) e outros (à direita) ainda mais aos berros justificam a vontade de o enterrar - como se estivesse morto...;

11. E, sem se poder aliar, seja à esquerda (que hostilizou), seja à direita (que justificou), talvez não seja tarde para perceber que é no apelo à moderação (que apoia todos e não apenas alguns e que, se tiver de escolher, não tem vergonha de escolher os mais desfavorecidos) e na luta pelo Bem Comum que se pode construir mundo... 

12. Ou não... e, nesse caso, o umbiguismo (que muitos gostam de encobrir com o vocábulo - e já é mesmo só vocábulo - "liberalismo") irá fazendo o seu caminho;

13. Em suma: começamos agora a perceber a caixa de Pandora que o umbiguismo tatcheriano abriu; e eu gosto, francamente, pouco do aonde ele nos trouxe!