terça-feira, 29 de maio de 2018

Memórias de um debate par(a)lamentar (ou já que falamos em eutanásia)...






A democracia tem de ser respeitada e é por isso que não me lerão a criticar a votação que hoje decorreu no parlamento (embora me apeteça muito escrever sobre as sensações que tive por ver o PCP "jerimonioso" e CDS "de Crista" a votar do mesmo lado ou sobre como foi delicioso ver a deputada do CDS a usar como grande argumento para os outros partidos passarem a pensar como ela o facto de a Maçonaria pensar como eles deviam pensar)… 



Mas a verdade é que, hoje, só me vinha à ideia o meu avô Herculano, homem de bem e que soube educar e prover a dois filhos e aos empregados que dele dependeram durante toda uma vida de trabalho duro e que (já lá vão mais de trinta anos), comido por um cancro que o havia de levar – imerso em dor, passados uns meses –, pedia à minha mãe, sua filha dileta e que fazia as vezes de enfermeira à mingua delas, que lhe desse de uma vez a morfina que devia durar uns dias e, assim, acabasse com o sofrimento dele. 

Lembro-me das lágrimas que corriam pelo rosto daquele homem que me ensinou a tabuada dos "9" ainda antes de a minha professora primária me ter ensinado a dos "6", de cada vez que a minha mãe tinha de recusar-lhe o pedido que tão genuína e doridamente lhe fazia o homem que mais amava à face da terra; lembro-me do esgar de dor nos seus olhos, ainda hoje me doem os seus gritos de agonia de dia e noite durante muitas semanas… 

Lembro-me da mágoa que via na minha mãe de cada vez que tinha de recusar o que lhe pedia o homem que tanto a amava... 

E lembro-me dos anos todos em que a minha mãe (que, curiosamente, partiu faz hoje quatro anos, do mesmo estúpido cancro de que morreu o meu avô) se roeu por dentro por não o ter podido respeitar naquela que era a sua vontade legítima (digo eu) e compreensível (diremos muitos, espero). 

Como há trinta e tal anos o meu avô estava condenado a sofrer (como um danado num inferno terrestre), hoje condenaram-se muitos a continuar a sofrer... 

Ao meu avô Herculano não lhe permitiram senão (face à míngua de mínimo de esperança de vida digna) viver (sabendo que não lhe sobreviveria) um cancro que lhe comeu o corpo todo, ao ponto de ter sofrido uma fratura exposta num braço quando alguém lhe dava banho, ao ponto de ter deixado de (re)conhecer a mulher que amara a vida toda, de tal modo o cérebro estava já "comido". Como há trinta anos, condenaram-se milhares a fazer de conta que não ouvem (como a minha mãe não podia ouvir) todas as vezes em que os Herculanos que por aí estão pedem o que acham que é seu direito: ir embora enquanto o mínimo da dignidade ainda lá estiver... 

A democracia tem de ser respeitada, é um facto… mas dói muito ter de o fazer quando é ela quem condena à indignidade quem merecia dela mais respeito…


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