segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Crónica de uma tarde de praia…


Se me pedissem para descrever a minha sensação neste momento e mo pedissem numa só palavra, eu talvez quisesse usar “pertença”.

Pertenço, de alguma forma a este mar (de Paramos, cada vez mais a minha praia), hoje tão calmo, hoje quase manso, frio e quente ao mesmo tempo, como sempre é frio e quente o mar de Espinho: frio no encontro, quando ficamos com a sensação de que os ossos estão lá só para sentir aquele saber a gelo duro e quente quando as ondas nos abraçam e temos a sensação de que se enrolam não em si mesmas, mas à volta de nós, num verdadeiro abraço de mar, branco de espuma, tão puro por isso que o sentimos capaz de lavar a alma (e as más energias, como disse, há um pedaço, uma das minhas amigas que me trouxeram a este privilégio).

Pertenço, de um saudoso jeito, àquele grupo de cinco ou seis moços adolescentes que, “adolescentemente", exibem os seus dotes em passes, remates e manchetes mais ou menos bem executados às moças que com eles estão na roda – não por especial apetência para esta coisa, que aqui chamamos brincadeira de praia e, noutras paragens, chamam de desporto, mas para se mostrarem a eles como eles a elas se mostram.

Pertenço às memórias que se avivam à vista daqueles dois miúdos (dois rapazes – parece-me – mas também poderiam ser duas rapariguitas ou um menino e uma menina, que na idade deles ainda só se tapa aos catraios o que em baixo haja para tapar e longe vem o tempo em que elas e só elas se hão de tapar por cima – e isto nestas praias, que outras há onde nem em cima se tapam e fazem muito bem), daqueles dois que dividem entre si, apesar de certamente alguma coisa ser de um deles só, a pá verde e o balde amarelo e nem imaginam quantos admiram a sua verdadeira obra de engenharia infantil: uma represa contra as investidas das ondas, feita de sobrepostas e sucessivas camadas de areia molhada, e que vai deixando do lado da praia uma cova funda (de algum lado tinha de vir a areia que faz o paredão, ora). E pertenço à lembrança de que, como eles, também eu me deliciava quando o mar contrariava o génio de engenheiro pueril e enchia a cova… e do consolo, mesmo assim, que era ver cheio de água o que deveria ser só território meu e que, por ser meu, queria seco mas que, afinal, encharcado, ficava uma piscina “altamente” (pudera, era particular e de água salgada, vejam bem: um verdadeiro luxo)!

Pertenço à visão daquela rapariga que se banhava há pouco nas ondas (que agora crescem mas ainda não o bastante para amarelecer a bandeira milagrosamente verde que o poste dos nadadores‑salvadores exibe) e que de cada vez que o mar lhe batia no peito procurava com mãos aflitas o sítio onde deveria estar a parte de cima do bikini e descobria, consolada, que ainda lá estava, as mãos em concha protetora que dispensa agora, deitada na toalha de flores de cores berrantes que a separa do areal. E pertenço às brincadeiras que o mar gosta de fazer com as mamas das meninas, que ele gosta de andar por debaixo da roupa de praia e, mais vezes do que elas gostariam, gosta de roubar às meninas o que lhes tapa as virtudes…

Pertenço à terra que permite o avistamento daquele velho (pelo menos, parece-me velho, de tão curvado) que ali vai ao fundo com as canas ao ombro e que vai deixando na areia que pisa lentamente as marcas das galochas verdes, horríveis e puídas, que lhe impedem o passo mas que o manterão seco na eterna espera do que haja de vir à linha (um robalito ou dois é que era, que os restaurantes da beira mar sempre os compram a bom preço).

Pertenço àquela embarcação de proa empinada, ali parada ao fundo e à arte xávega que ela lindamente simboliza. Pertenço aos meus sonhos de “vilão” por berço que, mesmo assim, desde catraio se imagina dentro daquele barco, rompendo as vagas que hoje não quiseram vir, e dentro dessa meia lua as redes, o saco, as mangas que só podem pescar porque mãos zelosas as cosem ao sol que a mim queima, mas que aos vareiros curte em escuridão as peles claras.

Pertenço não menos à memória de um garoto em passeio rua dezanove abaixo pela mão da avó amiga e educadora e do seu espanto por ver as sardinhas do “nosso mar” saltando em cima dos oleados amarelos (mas limpos, imaculadamente limpos) que cobriam as canastras que as peixeiras pousavam no chão, ao mesmo tempo que apregoavam a sua “d’Espinho vi-i-i-va”. E de ter comentado o meu espanto por ainda bulirem e de o meu pai me ter explicado que aquele aparente movimento era efeito dos caranguejos que vinham na rede e que, ardilosamente, eram postos por baixo do peixe, para que o peixe, já decesso, mexesse de quando em vez. Pertenço à alegria de poder usufruir da infinita sabedoria do meu pai (sim, porque o meu pai – ainda mais naquela altura que hoje, com certeza por culpa minha – sempre foi senhor de saberes infindos).

Pertenço a isto tudo e a muito mais que o privilégio de ter nascido nesta terra me faz ter…

E, curiosamente, foi preciso que tivessem vindo cá mostrar-mo duas amigas que nasceram e vivem em sítios sem mar perto. De algum saudoso jeito (se mais não fosse, por ter partilhado com elas o meu tempo de “exílio” em Coimbra, tempo em que não tinha todas estas coisas a que pertenço), também a elas eu pertenço… e também a elas o agradeço. Mais que não fosse, pelo “ensinamento do dia”: as coisas (e as pessoas e as memórias) a que pertencemos não têm de estar lá sempre para que lhes pertençamos: mas é tremendamente bom quando, porque as vivemos, sabermos que lhes pertencemos…

2 comentários:

sougus disse...

Um texto com sabor a mar/saudade.

Raul Dias disse...

muito bom joao...