sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Independência vs autonomia... sim: "vs"!


Sei que vou ser “contra-corrente” e até pouco politicamente correto, mas ando francamente incomodado com este rasgar de vestes de tanta gente a propósito da decisão da Senhora Procuradora Geral da Républica de dar corpo internamente a este parecer do Conselho Consultivo da PGR… 
Com o devido respeito, que muito é, não se estará a dar demasiada aproximação ao conceito "independência" à autonomia que caracteriza o Ministério Público (coisa que a lei e a História por trás dela quiseram que fosse o que lhe está atribuído)?
Não pode haver independência numa estrutura (felizmente) pensada como hierarquizada...
Deixo, obviamente, o seguinte ponto prévio: rejeito pura e simplesmente a possibilidade (quanto a mim, ilegal - ainda para mais num órgão sujeito ao princípio da legalidade), repito, a possibilidade sequer de uma intervenção não escrita e sujeita, oportunamente, ao princípio da publicidade (mais que não seja porque, quanto a mim, é imperioso que o JIC possa perceber na totalidade o que se passou no processo durante a fase de inquérito, se efetivamente se quer que ele o sancione e "avalize" - as aspas são propositadas).
Já no que toca ao que muitos chamam de interferência, estou em crer que mais não é que o decurso da hierarquia e da hierarquização a que o Ministério Público está sujeito, a meu ver felizmente.
Talvez tenha que ver com a minha convicção do que é e deve ser o Ministério Público.
Sempre o entendi autónomo e nunca independente – indepenência que, sob o meu ponto de vista, a hierarquia impede pura e simplesmente.
E isso trouxe-me já alguns amargos de boca, confesso (v.g., há anos que um procurador se incomodou muito comigo e ainda hoje vive assim, incomodado – o que só me incomoda porque somos francamente amigos e não gosto de quezílias com amigos, confesso! – porque eu não abdico da minha decisão de nunca me referir a um procurador (salvo o que for PGR) como sendo "magistrado", coisa que não o faço por entender que o magister vem exclusivamente da independência e essa só a reconheço aos senhores juízes, no nosso quadro jurídico-constitucional).
Mas a verdade é que eu acho necessário que um procurador-coordenador tenha a legitimidade para dizer a um procurador da sua "equipa" que não é aquela a linha de investigação que deve seguir, mas antes aqueloutra, com vista a cumprir eficazmente o princípio da legalidade a que o Ministério Público, enquanto corpo e enquanto órgão, está adstrito.
Até porque considero que é nessa hierarquização que se define a regra essencial: os bons vão subindo e "ensinando" os que ainda lá não chegaram...
Passe o exemplo (que, por cautela, vou dizer que é absolutamente ficcionado), há meses, dei com um Colega a contar que, num inquérito, se apercebeu de que o seu constituinte estava tramado: o procurador adjunto estava mesmo a andar para onde lhe dava jeito em termos de investigação até certo ponto e, de um momento para o outro, a coisa começou a correr ao contrário. E contava que soube, depois e por mero acaso, que a coisa tinha acontecido assim porque alguém na PSP tinha ido "bichanar" ao superior hierárquico que a coisa estava a andar mal e o superior hierárquico tinha intervindo, corrigindo o comportamento (bem pensado se o objetivo era (e sei que era) para apanhar mais uns quantos do que os que se apanharam, mas pouco eficaz para a investigação, i.e., para a possibilidade de vir produzir uma acusação verdadeiramente forte e demonstrável – coisa que, confessadamente, até dava jeito ao cliente do tal Colega).
Vamos a factos?
– Essa intervenção não foi absolutamente secreta? Foi!
– Está documentada em lado nenhum do processo? Obviamente, não (e não será a mim que me lerá alguém a escrever que tal teve o fito de “proteger”, quase corporativamente, o mais abaixo na hierarquia) …
 Alguém se chateou ou rasgou as vestes por isso? Obviamente que não… até porque a prossecução da ideia de “legalidade” ficou reposta com a “intervenção oculta”...
– O que há de errado nisso? O facto de não ter sido documentada a intervenção (ao que tudo aponta, "musculada")... porque a legalidade, essa, garantiu-se só dessa forma!
Não me digam, portanto, que a intervenção nos termos em que o tal parecer a defende e propugna é má!
Não é! É uma decorrência normal de uma hierarquia e de uma hierarquização que a Constituição e a Lei querem, por muito que não agrade a uns e outros…
Uma nota final: eu sei que é difícil a quem preza a sua independência acima de tudo e sabe que ela (só ela!) é garantia de efetivação do Estado de Direito, pensar que haja dever de "obediência" (e ponho as aspas de propósito) oponível a alguém dos que trabalhamos nesta "coisa" que é a justiça... mas a verdade é que um Procurador não é independente: é parte de uma estrutura hierarquizada, que nem ela é independente: é autónoma...
Talvez tenhamos errado quando fizemos os agentes dessa hierarquia e a comunidade achar que sim (e fizemo-lo, v.g., nas becas iguais, nos gabinetes porta com porta em vez de estarem em edifícios diferentes as respetivas zonas de trabalho, nas bancada que são da mesma altura nas salas de audiências, etc...)...
Eu, pelo menos e com mágoa, tendo a considerar que sim cada vez mais...
Por mim, não prescindirei de colocar esta questão onde ela deve ser colocada: Independência vs autonomia... sim: "vs", porque são conflituantes e, quando deixarem de o ser, perderá muito mais o Estado de Direito Democrático que qualquer das sua instituições...

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