Pensei muito antes de escrever isto (no final direi porquê), mas a consciência não me permite ficar calado perante o que venho assistindo e que, sob o meu ponto de vista, significa uma mudança na forma de se ser Comunidade e de se estar em Comunidade que, sinceramente, me preocupa muito…
A semana passada, por razões que não vêm aqui ao caso, estive parado no centro do Porto uns bons quinze minutos, ali na rua de Sá da Bandeira, perto da Estação de S. Bento.
Uma carrinha da autoridade e uns oito ou nove agentes dessa autoridade, num aparato (para mim nada necessário e nada bonito de se ver), começavam uma operação “stop”.
Objetivo (à partida, louvável): o de fiscalizar aqueles que, em scooters e bicicletas elétricas, de mochila verde, amarela ou roxa às costas, dedicam a sua vida a entregar a comida e as compras que vamos encomendado pela internet.
Realidade:
(a) pessoas com aparência de estrangeiro – e era fácil perceber que o eram, pelas longas barbas, pelo tom de pele, pelo turbante estranhamente a “saltar” do capacete – eram imediatamente mandadas parar; dos que não tinham esse aspeto, a maioria seguia caminho;
(b) àquelas pessoas, a abordagem era quase nunca polida, usava quase sempre o “tu” – ouvi coisas como “estás legal? Se não estás, é melhor dizeres já!” – e pecava, essencialmente por ausência do respeito que (eu, pelo menos, espero) de um agente da autoridade;
(c) aos outros, principalmente os que demonstravam a nacionalidade portuguesa, o tratamento era diferente: o “você” era usado e a aspereza no tom desaparecia;
(d) só se via medo nos olhos dos que aparentavam ser estrangeiros; estavam intimidados e notava-se que estavam a ser intimidados…
A minha cara havia de estar a mostrar o meu espanto (quase a minha revolta) e uma velhotinha simpática, daquelas que se nota que andam na rua também pelo prazer de meter conversa, deve ter notado e disse-me baixinho: “isto agora é quase todos os dias: os monhés estão sempre a ser mandados parar”.
Um bom bocado à conversa e percebi que nem eu nem a senhora sentíamos conforto ou segurança com aquilo.
Entretanto, chegou a filha da senhora, de dentro de um estabelecimento qualquer: ela, sim, dizia que ainda bem que aquela gente era tratada como merecia: “é só pretos e monhés a fazer estas coisas; e brasileiros? São uma praga, senhor!”
Dei por mim a querer sair dali… não tanto pelo que estava a ver, mas porque algo em mim me lembrava que, sendo aquela operação policial seguramente “ordenada superiormente”, a forma como as pessoas eram abordadas não poderia vir de ordens superiores… dei por mim a pensar que aquilo era mau de mais para ser verdade: um agente de autoridade é o primeiro garante da igualdade, do respeito por todos, sem destrinças em função da (aparência de) nacionalidade…
E, se não são, deve haver (tem de haver!) por parte de quem manda a instrução clara de que assim tem de ser…
No fundo, o que me deixou com uma enorme mágoa foi o pensar que aquelas pessoas agiam assim não apenas porque são assim (e não deveriam ser assim ou, pelo menos, não deveria poder ser agentes da autoridade se são assim), mas porque sentem que podem ser assim, já que ninguém acima deles evita – antes potencia – que sejam assim…
E não é dessa “massa” que eu gostaria de ter agentes ou superiores de agentes nas forças que asseguram a nossa segurança como Comunidade.
Porém, o que me doeu mais foi o que pensei a seguir: “ainda bem que ficaste caladinho e não deixaste sequer transparecer o que pensaste: afinal, andas na estrada quase todos os dias e nunca se sabe o que gente que age assim pode fazer…”
Mais que ausência de orgulho em mim mesmo (nunca fui de silêncios perante injustiças), o que agora, ao escrever estas linhas me incomoda é a noção clara de que estou, também eu, a tornar-me vítima de uma sociedade cheia de medo(s) que – triste e indevidamente – estamos a deixar criar…
Acho que mais que ter a sensação de que ninguém guarda os guardas, foi a de que há algo de intencional nisto que me deixou esquisito.
Fiquei com a noção de que há a quem interesse o temor reverencial por quem deveria ser respeitado e não temido, com o intuito claro de ir gerando medo desse “braço armado” de quem efetivamente manda.
É óbvio que o respeito que a autoridade me inspira (que, felizmente, sempre me incutiram e de que não abdico) jamais me permitiria questionar aqueles agentes sobe o que faziam; mas estar calado por ter medo de fazer diferente, em vez de ser o respeito a inspirar o meu silêncio é algo que continua a incomodar-me…