Morreu(-nos) um mestre, um verdadeiro Mestre…
Ontem, a vida confirmou-me que o Zé Luís nos dizia a verdade
quando se apelidava de humano…
Custa a acreditar. O Borges Coelho não parecia humano: o animal
que assim catalogámos é intrinsecamente egoísta. Mas o Zé Luís não: para o Zé
Luís tudo era (e era sempre!) sobre o outro; o outro que merecia mais dele e de
todos, o outro que merecia tudo de que ele fosse capaz. E era (inacreditavelmente)
capaz de muito mais do que esperamos dos “humanos”.
Era Mestre da Palavra com que se faz música e da Música com
que a palavra se deve fazer.
Era intérprete como nenhum (não, não é como poucos: é mesmo
como nenhum!) de muita música coral.
O privilégio que tive de o ter por maestro é inenarrável: o
Zé Luís era aquele maestro que sabia que um coletivo é capaz de tudo quando suficiente
e empaticamente motivado. Talvez por isso, o “seu instrumento” – o Coral de
Letras da UP – fez de tudo como poucos poderiam fazer… com ele, por causa dele,
(tantas vezes até) por ele…
Mas era, acima de tudo, era um Homem bom: aqui há uns anos,
à procura do que achava que dois compassos deveriam ser, obrigou-se a passar um
sábado à tarde – literalmente um sábado à tarde inteiro – à volta de pouco mais
de uma dúzia de notas entre três barras ao alto de um motete de Francisco Martins.
E, por incrível que pareça, ao voltarmos-lhes, na
segunda-feira seguinte, o trabalho incansável do Zé Luís tinha ficado plantado
e estavam feitas a Beleza e a Arte que os privilegiados que as fizemos com ele
jamais esqueceremos…
Mas, quando falava disso, não era o resultado que lhe
despontava o sorriso bondoso e amigo: era, pelo contrário (um “ao contrário” de
que só os verdadeiramente bons são capazes), o facto de todos termos aceite aquilo
e querido aquilo, como se a “generosidade” daquelas três horas fosse nossa e
apenas nossa…
Solidário como conheci poucos – gostava de saber quantos
ainda conhecem que prescindissem de si pelo outro ao ponto de renunciar à “faustosa”
Casa da Música quando a Casa da Música maltratou os seus músicos precários no
pós-pandemia – nunca se aproveitou de nada do que fez para benefício próprio. O
“seu instrumento” é talvez a prova maior disso: jamais se serviu do Coral de
Letras da UP; sempre serviu (n)o Coral de Letras da UP.
O Zé Luís, ainda por cima, tinha sempre colo para todos.
E tinha-o especial para os que menos o merecíamos.
Aqueles dois braços finos, aparentemente frágeis, encerravam
uma força inquebrantável e eram tão longos e capazes de abraço que parecia que não
acabavam nas mãos, também elas (pre)dispostas a embalar…
E, por falar em mãos, elas diziam imensamente do como era bom.
Há peças que cantámos sob a sua direção dezenas de vezes; nunca o seu gesto era
igual em nenhum momento de direção: quando dirigia o Coral, ao mesmo tempo que parecia
que escutava cada um dos membros daquele coletivo, tenho a certeza de que nos olhava
nos olhos, nos lia a alma e o querer e de que só pedia aquilo que fossemos capazes
de dar naquele instante (nunca o vi exigir, apesar de ter todo o direito de o
fazer).
E, por isso, o gesto era sempre diferente: porque nada no Zé
Luís era mecânico, nada nele era artificial; o gesto (cada gesto, todo o gesto)
era inspirado no outro tanto quanto inspirador era para o outro…
Talvez por isso – seguramente por isso! – era tão bom estar
ali, onde ele ia mostrando que é infinitamente bom estarmos para o outro.
O outro, o nosso igualmente humano… mesmo quando nos mostra
por que parecia que o ZLBC não era humano…
Infelizmente, ontem, morrendo(-nos) como os humanos nos vão
morrendo, deixou uma última lição dessa Humanidade em que era (e na memória de
muitos, há-se ser sempre) um verdadeiro Mestre…
Obrigado, Mestre ZLBC!
(A foto “gamei-a” à Ana. E talvez torne tudo o que escrevi uma redundância...).